quarta-feira, 21 de maio de 2008

Enxurrada de Sentimentos


Como uma fotografia de um velho filme francês. Uma grande cortina branca, de seda, tecida de alto a baixo: a sensibilidade. Um tapete preto peludo, uma poltrona vermelha: o requinte. Uma vitrola antiga a soar poéticos versos musicados de um magistral compositor que inspiravam nostalgia: a magia. Uma lareira emanando um calorzinho, uma taça de Merlot e a chuva serena e volumosa caindo no jardim: o cenário perfeito.


Sentada em um chão de mogno-cereja em frente à janela, ela percebe que domingos chuvosos exalam inspiração, sentimentos e pensamentos. Faz tempo que queria estar a sós com seus pensamentos: um tempo só para ela. Para avaliar, entender, sonhar, imaginar e aceitar. Sem gritos, sem agitação, sem risadas, sem reclamações e sem choro. Ela não é mais a doce e determinada criança, mas uma frágil e segura mulher. Será? Os olhos se alongaram e os músculos se desenvolveram, mas ela sente, em alguns momentos, que já não sabe quem é e para onde vai.


Por que a vida é assim? Porque é chegado um momento em que crescemos tão repentinamente que como num flash temos que cortar o cordão umbilical e se soltar das amarras da ilusão e ver a realidade cair como uma bomba em nossos pés que nos deixa assustados e desorientados?


Ela suspira e conclui: é como a chuva a deslizar sobre as árvores e telhados. Demonstra-se incrivelmente semelhante à vida. Há períodos de seca, angústia e espera incessante por suas gotas. Que às vezes demoram em acontecer, sentimo-nos perdidos esperando que a chuva chegue como algo impactante, novo, enriquecedor que regará e renovará nossos anseios e ideais.
Mas, velozmente ocorre uma reviravolta: o vento vira, as nuvens se agrupam, ouve-se os trovões e a aguardada chuva chega. E vem arrasadora, feroz, violenta: e ataca em forma de tempestade, demorando em cessar. Alcança uma proporção incontrolável e atinge nossa vida muito vertiginosamente, que de tão forte nos deixam arrasados, fracos, vazios, desiludidos e desesperados.


São momentos que nos encontramos saturados e não tempos tempo e nem condições de sentar ao lado da lareira, ver a chuva cair e degustar o vinho. A tempestade acerta-nos em cheio e só reclamamos dos sinais deixados por ela: não agradecemos seu frescor, não sentimos a suavidade de suas gotas escorrendo pela face, não percebemos o quanto crescemos com os torrenciais acontecimentos trazidos por ela, não apreciamos o sabor do medo sentido: das alegrias compartilhadas, das irremediáveis aflições.


Como seres indecifráveis desejamos novamente a seca: a calmaria, o nada. E quando se deseja algo do fundo do coração, o universo inteiro conspira em favor de sua realização. E bum! Vem a explosão! Com o silêncio dos trovões, acompanhado do vento que não sopra mais, das nuvens que se dissipam. A lareira apaga, a taça de Merlot seca, a chuva pára: estamos novamente vazios. Só restou a fotografia em preto e branco, a cortina a embalar com a brisa, a boa música no ar, a companhia de sentimentos vividos e perdidos, a lembrança de momentos memoráveis e a saudade de tudo que passou.


Ela ri sozinha ao ver a chuva molhar o piso. E lembra de uma citação de seu poeta favorito: Shakespeare. “ Há mais mistérios entre o céu e a terra do que possa sonhar sua vã filosofia.” Como ele tem razão, como há mistérios em nossa vida! O bicho-homem quer tanto entender do mundo e apoderar-se dele, e nem sequer compreende as próprias ações e atos. Ora quer a tempestade, ora a calmaria. Ora risos, ora o choro. Ora o amargo, ora o doce. Ora o sol, ora a lua. Ora a paz, ora o furor. Ora enxurrada de sensações e ora tempo para pensar!

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